sábado, 21 de setembro de 2013

Outono em Português....




Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes.
                                                   
Ricardo Reis


Uma névoa de Outono o ar raro vela,

Cores de meia-cor pairam no céu.

O que indistintamente se revela,

Árvores, casas, montes, nada é meu.



Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.

Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.

Mas entre mim e ver há um grande sono.

De sentir é só a janela a que eu assomo.



Amanhã, se estiver um dia igual,

Mas se for outro, porque é amanhã,

Terei outra verdade, universal,

E será como esta [...]

Fernando Pessoa

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

... Cate Blanchett ... jasmin...


(do blog de João Lopes)


Cate Blanchett encontra Woody Allen

Digamos, para simplificar, que Cate Blanchett é uma das maiores actrizes contemporâneas. É bem verdade que as vestes brancas que usou para interpretar Galadriel na trilogia de O Senhor dos Anéis nada significam — um adereço vistoso não é o mesmo que uma actriz (ou um actor) a trabalhar. Mas composições como as deBabel (Alejandro González Iñárritu, 2006), Diário de um Escândalo (Richard Eyre, 2006) ou O Estranho Caso de Benjamin Button (David Fincher, 2008) bastariam para demonstrar, não apenas a versatilidade dos seus recursos, mas sobretudo a capacidade de instilar nas suas personagens um misto de evidência e enigma que nos faz olhá-la como quem contempla as infinitas configurações das ondas do mar — mesmo quando tudo parece repetir-se, nada é igual.
Creio que há três momentos que podem simbolizar o sentido de risco, e também o génio interpretativo, de Blanchett.
O AVIADOR (2004)
O primeiro é, obviamente, a personagem de Katharine Hepburn em O Aviador, de Martin Scorsese. Ao interpretar uma figura lendária de Hollywood, Blanchett confronta-se com a possibilidade de o próprio mito sugar a sua performance, reduzindo-a a uma "ilustração" mais ou menos pueril. Não só tal não acontece, como deparamos com uma Hepburn de singular vulnerabilidade, num efeito que, mais do que desmistificação, funciona como um acréscimo de realismo.
I'M NOT THERE (2007)
O segundo momento está em I'm Not There, de Todd Haynes, onde encontramos Blanchett a interpretar... Bob Dylan! Para além da prodigiosa, mas muito suave, imitação iconográfica, deparamos com uma espécie de exaltação abstracta da figura de Dylan, como se uma personagem fosse menos uma "reprodução" e mais o consumar de um conceito humano que nasce das convulsões da pessoa real.
BLUE JASMINE (2013)
Enfim, temos o fabuloso Blue Jasmine, agora chegado às salas portuguesas. Woody Allen aposta numa reinvenção contemporânea da Blanche DuBois, de Um Eléctrico Chamado Desejo (que, aliás, Blanchett já interpretou em palco), gerando uma das mais admiráveis figuras femininas de toda a sua filmografia — dir-se-ia que a sua perdição física e social funciona também como reflexo perverso da decomposição corrente do mundo financeiro, lembrando-nos que, com mais ou menos máscaras burlescas, Woody Allen nunca deixou de ser um analista contundente do seu/nosso presente.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

... textos curtos... nº2



Molécula de Leitura (MdeL)

DIA 0 / Nunca fui de acreditar muito em coisas como homeopatia, acunpultura, etc… embora reserve sempre estes assuntos para uma gaveta onde guardo os não explicáveis, os desconhecidos, os incompreensíveis… na esperança que um dia ainda lá vou na busca de resolver perguntas perdidas ou necessidades prementes. No outro dia, a juntar à lista, veio, em conversa informal numa quente tarde de verão, a histórias das feromonas humanas. Este é outro assunto que está na tal gaveta, embora saiba que no mundo dos seres vivos (em particular insectos e plantas), as feromonas são moléculas identificadas, de estrutura já conhecida; utilizando diferentes aromas ou mensagens químicas, como meio de comunicação, vários códigos são enviados em geral por via aérea. Tudo tem a ver com receptores e reconhecimento molecular. Mais discutida e menos estudada a suspeita de feromonas humanas. A sua presença parece pairar e quase demonstrada em comunidades fechadas, por exemplo de mulheres, que pelo facto de estarem juntas (mosteiro, colégio) entram numa espécie de bio-ritmo ressonante, como por exemplo, ciclos menstruais.  Uma explicação é que compostos voláteis relacionados com o despoletar do evento são transmitidos e reconhecidos pelas comunidades. Suskind, no livro “O Perfume” fala neles e não é por acaso que o heroí, usando a sua produção sensorial, atrai multidões e é literalmente comido, como que num acto de “amor e atracção”.
De divagação em divagação falámos nos hábitos de leitura, do gostar de ler e não ler, e se por acaso haveria moléculas que poderiam ser reconhecidas e levar a desejos compulsivos de leitura. Numa nota de rodapé, este problema do controlo consciente ou inconsciente de multidões tem o que se lhe diga, e até leva a pensar se os grandes ditadores não teriam conhecimento deste know-how.
Tudo isto ficou a fervilhar…

DIA 1 / Entre a Química e Bioquímica deve haver metodologias a experimentar que possam dar alguma satisfação intellectual ao problema. A Clara Pinto Correia, num conto escrito há anos, aplicava metodologias destas áreas para estudar ficcionalmente a molécula do prazer. O problema é tentador, desafia qualquer um… e se não se tentar nunca se sabe… existem as tais moléculas da leitura (MdeL)? Etapa inicial = procurar compostos voláteis num ambiente fechado em que uma elevada população estivesse a ler. Uma Biblioteca seria um local potencialmente a ser explorado. As MdeL, expiradas pelos leitores/amadores (no sentido de amar ler), deveriam estar no ar ambiente e deveriam transmitir na vizinhança indução de mais hábitos de leitura. Premissa elementar: os métodos experimentais exigem concentrações apreciáveis. Em princípio a ideia seria concentrar o ar ambiente, adsorver os componentes voláteis num suporte próprio e purificar as MdeL. Em etapas intermediárias, em que a ftriagem fosse feita, deveriam permitir ter fracções que o próprio experimentador podia usar (ou num colaborador conveniente, cúmplice e crédulo) e registar se sentia desejo aumentado para o acto de leitura.

DIA 2 / Tentiva de design de um sistema experimental. Um grande saco afunilado com uma sucção colocada no fundo, onde entreposto seria posto um adsorvente (vários materais seriam testados… carvão activado, silica gel, zeolite). Um esquema foi desenhado. (ver esquema que deve ter um ar de Leonardo da Vinci).

DIAS 3 e 4 / Tempo de aquisição e construção do protópito.

DIA 5 / Obtenção de licensa para colocação do captador de MdeL num local duma Biblioteca (muito frequentado) e dissimulado. Todo o sistema foi optimizado para ser silencioso (amortecedores de espuma na base da instalação e uso de um motor/ventilação /sucção adequado).

DIA 6-10 / O sistema usando silica gel esteve a operar em contínuo. O adsorvente foi retirado e colocado num Erlenmeyer fechado em atmosfera inerte. Retirada com uma seringa uma parte do espaço gasoso a inalação do mesmo não produziu efeitos… nem motivações, nem alteração de disposição. A pensar num modo de extrair algum material que possa estar absorvido.

DIA 11 / O material foi dividido em 3 partes e posto em contacto com um solvente aromático, um apolar e um polar (água), tudo em atmofera inerte de azoto. Agitação contínua do sólido na presença dos solventes testados. Centrigugação dos 3 conteúdos para remover o sólido. Evitar respirar o solvente aromático.

DIA 12 / Todos os extractos foram submetidos a técnicas analíticas, de cromatografia e de espectrometria de massa. Não foram detectados compostos.

DIA 13 / Para refletir  e não desistir.

DIA 14 / Repetir todo o processo usando carvão activado. Montagem do sistema.

DIAS 15-20 / Sistema com carvão activado a operar em contínuo.

DIA 21 / Extracções com os 3 sistemas anteriormente descritos.

DIA 22 / Análise química. A cromatografia e a espectrometria de massa detectam um composto de baixo peso molecular no solvente aquoso. Estimulante este resultado. Parece ser um composto único o que vai facilitar a identificação. Transferida uma alíquata da solução aquosa contida em sistema fechado e deixáda aberto ao ar. Nova análise não detecta nenhum composto. Deve ser muito volátil ou sensível ao ar.

DIA 23 / A exitação do momento não deixa descansar.

DIA 24 / Miro e remiro o fraco e a solução aprisionada em atmosfera inerte. Preciso de fazer algo mais para avançar na identificação do composto. A tentação é muito grande. Abrir o frasco e inalar/respirar. O suor escorre pelas fontes. As mãos tremem. Terá algum efeito?… toxicidade, dependência, efeitos colaterais … será apenas um sonho em solução aquosa?

DIA 25 / A situação está a ultrapassar os limites.. não como, não durmo… pergunto se devo patilhar com alguém, correndo o risco de ser considerado pouco credível, louco…
Aquele frasco é uma lâmpada mágica, uma poção mágica… o talvez seja nada.
É impossível… imparável… Vou abrir um pouco o frasco, respirar… abro… tremo… Inspiro num grande amplexo…

DIAS XX / Não sei quantos dias se passaram. Entrei num estado de sonulência, semi-consciência, letargia!
Devo ter acordado entretanto… agora, ontem, há quanto tempo?
Estou magro e esfomeado. À minha volta a sala parece ter sofrido um turbilhão. Os livros estão fora das estantes… ahhhh… Tenho estado a ler, estou a ler, quero ler, não posso parar de ler… queridos autores… companheiros generosos, tanto saber, tanta informação, tanto desafio A leitura parece facilitada, meus olhos são leitores quase digitais, metamorfoses adaptadas a este novo estado. Estou feliz, meus receptores estão saturados por essa molécula que se adsorveu no carvão activado... não quero saber o que é… sei que existe e me fez ultrapassar e viver um estado espiritual diferente… nem sei porque estou a escrever?
O que quero é ler, ler, ler…






domingo, 15 de setembro de 2013

... textos curtos... nº1


. , ; : ! ? Os Pontos


Cena única - no Consultório de um Psiquiatra

Fonte de inspiração
O Canto dos Fantasmas (João Aguiar, Publicações D.Quixote)
A Metamorfose (Franz Kafka, ed. Livros do Brasil)

Como diz, senhor doutor ? Sim, estou bem, sinto-me fisicamente bem ... acanhado ? Não !!
Quer dizer ... deixe-me explicar. Não leve a mal nem julgue que isto tem a ver consigo, mas
acontece que fico sempre que a modos de esquisito quando tenho de dar o nome e as restantes informações para uma ficha médica ... como se a ficha me vinculasse à doença, entende ?? Acertou, tenho medo de consultórios, é uma atitude irracional. O senhor, de mais a mais, um psiquiatra, há de saber que o homem não é feito só de racionalidade ....
Deixe lá ... dentro em breve já estou mais à vontade.
Por mim podemos começar, estou pronto a deitar-me no divã. Tem piada ... não há divâ ?!!
Desculpe, que vergonha ... ideias preconcebidas ... por mim tudo bem, esta poltrona até é
confortável. Enfim, estou pronto.
Ah ... começo eu ? É lógico. Mas vejo-me obrigado a dizer-lhe que tenho uma certa tendência para a divagação. Se me afastar meta-me na ordem.
Bem, vou começar. Tem toda razão, o tempo é precioso. Começo por lhe dizer que não sofro
de doenças do forum psiquiátrico, pelo menos segundo o que conheço.
A razão desta consulta é a seguinte: tenho passado ao longo da minha vida por uma experiência, várias vezes repetida com nuances diversas, que me marcaram e intrigam profundamente ao ponto de se tomarem obsessivas ...
É delas que vou falar .. .. Experiências que quase me levam a enlouquecer pela sua persistência ...não devia usar o termo enlouquecer ...eu não estou ... OK?
Ah, compreendeu! ! !
A primeira vez aconteceu há cerca de 25 anos, andava eu no Técnico ... Despertei, certa manhã, de um sono agitado e vi que me transformara num ponto .... Pois exatamente um ponto ... negro, redondo, isotrópico .. desculpe o palavrão da física, igual em todas as
direções do espaço em que seja observado.
Permaneci assim, imóvel ... bem ... rebolando um pouco de um lado para o outro ... um ponto negro debaixo de um lençol branco ...
"Que terá acontecido ?" pensei eu ... Não é um sonho ... Estava contido nas paredes familiares do meu quarto de dormir, a mobília, os papéis, os candeeiros, os cortinados ...
Olhei para a janela ... chovia ... "E se eu dormisse um pouco mais ?" pensei ... Mas isso era impossível ... costumava dormir de lado e agora só rebolava.
Como diz? Algum trauma familiar? Nada de especial ... infância sem história ...
Confuso isto não é? Para maior clareza, importa-se que eu fume? Bem sei que nos consultórios ... mas este é um consultório diferente ... Bom, obrigado. Mas, não ... não vou fumar. Só fumo cachimbo e depois isto ficava tudo empestado. Mais uma vez obrigado ...
Bem mais tarde isto repetiu-se. Estava em Inglaterra a fazer o doutoramento ... cinco anos depois ...mas ao acordar sentia-me inspirado pela experiência anterior, era assim com uma espécia de memória inconsciente ... Percebe o que estou a dizer? Queria ser mais ... aparecia
como dois pontos, depois transformava-me em três pontos, estilo reticências ...
Pois já está a pensar ... dois pontos ... esquisófrenia, alter-ego, dupla personalidade … três pontos ... indecisão, ou talvez qualquer coisa como os heterónimos daquele escritor ... nem me lembro o nome !!! ....
Parece-me que estou a divagar. Bem o tinha avisado, é um péssimo hábito meu ... um amigo
meu diz que sou como as bonecas russas .. abro muitas caixinhas e não as fecho ... fica tudo numa grande confusão.
O problema é que nos últimos tempos isto é cada vez mais frequente e com muitas nuances, mais complicações e maior variedade ...
O estranho é que o fenómeno de que tenho vindo a falar acontece agora de modos imprevisíveis, sem nexo ou ordem, e preocupa-me se alguém me observa ou me questiona .
além de poder ser molestado pois um ponto é insignificante (mesmo que dois ou três) e sabe-se lá o que me pode acontecer ...
Cheguei a tomar tranquilizantes, comprimidos para tirar o sono. Experimentei uns e
abandonei vários ... Uma amiga minha, muito viajada, até me trouxe uns chazinhos da China e nada de melhoras ...
Mas agora a transformação é múltipla... ponto de interrogação, ponto de exclamação ... sei lá ... pareço o prontuário .... Será que isto tem a ver com a minha procura interior, com a minha contemplação e incompreensão do infinito, do desconhecido ????
Interrogo-me, questiono-me, maravilho-me, espanto-me ....
Também fiz algumas leituras para tentar compreender o fenómeno, sabe? ... descobri nessas leituras palavrões horríveis como ... projecção metamorfósica, desdobramento tipo ou variante de OBE (out of body experiment) ... os americanos inventam cada coisa .
Bem sei ... está a pensar ... este coitado julga que é Kafka ." as ideias passam-lhe dos livros como as carraças da erva para a cadela de um amigo meu que tem uma casa na Terra da Torre, ali para a Arruda ...
Mas olhe Doutor ... já fiz psicanálise e ao diabo para a psicanálise. Até tenho amigos no ramo sabe ? Até me fizeram os testes de Rorschach ...
O que eu gostava era de ser capaz de repetir as experiências e controlar os acontecimentos … Afinal ainda não esgotei a pontuação. Muitas revelações se me deparam ainda. Já ouviu falar do Bartolomeu Dias? E do Vasco da Gama? Também eles exploraram o desconhecido ... e se calhar também lhes chamaram de doidos.
 O que quero ? Como cliente que paga quero uma receita que me dê poder para controlar o fenómeno ... Quero uma pílula de controlo de projeção metamorfósica ou qualquer coisa assim…

Doutor, Doutor ...
Para que chamou esses homens? São enfermeiros?
Espere aí !!! Você é um devoto do mundo como o conhecemos, um adepto do obscurantismo iluminado ...?
Não está aberto a novas experiências e novos conceitos ???
DOUTOR, O QUE ESTÁ A PÔR NESSA SERINGA ????