segunda-feira, 16 de setembro de 2013

... textos curtos... nº2



Molécula de Leitura (MdeL)

DIA 0 / Nunca fui de acreditar muito em coisas como homeopatia, acunpultura, etc… embora reserve sempre estes assuntos para uma gaveta onde guardo os não explicáveis, os desconhecidos, os incompreensíveis… na esperança que um dia ainda lá vou na busca de resolver perguntas perdidas ou necessidades prementes. No outro dia, a juntar à lista, veio, em conversa informal numa quente tarde de verão, a histórias das feromonas humanas. Este é outro assunto que está na tal gaveta, embora saiba que no mundo dos seres vivos (em particular insectos e plantas), as feromonas são moléculas identificadas, de estrutura já conhecida; utilizando diferentes aromas ou mensagens químicas, como meio de comunicação, vários códigos são enviados em geral por via aérea. Tudo tem a ver com receptores e reconhecimento molecular. Mais discutida e menos estudada a suspeita de feromonas humanas. A sua presença parece pairar e quase demonstrada em comunidades fechadas, por exemplo de mulheres, que pelo facto de estarem juntas (mosteiro, colégio) entram numa espécie de bio-ritmo ressonante, como por exemplo, ciclos menstruais.  Uma explicação é que compostos voláteis relacionados com o despoletar do evento são transmitidos e reconhecidos pelas comunidades. Suskind, no livro “O Perfume” fala neles e não é por acaso que o heroí, usando a sua produção sensorial, atrai multidões e é literalmente comido, como que num acto de “amor e atracção”.
De divagação em divagação falámos nos hábitos de leitura, do gostar de ler e não ler, e se por acaso haveria moléculas que poderiam ser reconhecidas e levar a desejos compulsivos de leitura. Numa nota de rodapé, este problema do controlo consciente ou inconsciente de multidões tem o que se lhe diga, e até leva a pensar se os grandes ditadores não teriam conhecimento deste know-how.
Tudo isto ficou a fervilhar…

DIA 1 / Entre a Química e Bioquímica deve haver metodologias a experimentar que possam dar alguma satisfação intellectual ao problema. A Clara Pinto Correia, num conto escrito há anos, aplicava metodologias destas áreas para estudar ficcionalmente a molécula do prazer. O problema é tentador, desafia qualquer um… e se não se tentar nunca se sabe… existem as tais moléculas da leitura (MdeL)? Etapa inicial = procurar compostos voláteis num ambiente fechado em que uma elevada população estivesse a ler. Uma Biblioteca seria um local potencialmente a ser explorado. As MdeL, expiradas pelos leitores/amadores (no sentido de amar ler), deveriam estar no ar ambiente e deveriam transmitir na vizinhança indução de mais hábitos de leitura. Premissa elementar: os métodos experimentais exigem concentrações apreciáveis. Em princípio a ideia seria concentrar o ar ambiente, adsorver os componentes voláteis num suporte próprio e purificar as MdeL. Em etapas intermediárias, em que a ftriagem fosse feita, deveriam permitir ter fracções que o próprio experimentador podia usar (ou num colaborador conveniente, cúmplice e crédulo) e registar se sentia desejo aumentado para o acto de leitura.

DIA 2 / Tentiva de design de um sistema experimental. Um grande saco afunilado com uma sucção colocada no fundo, onde entreposto seria posto um adsorvente (vários materais seriam testados… carvão activado, silica gel, zeolite). Um esquema foi desenhado. (ver esquema que deve ter um ar de Leonardo da Vinci).

DIAS 3 e 4 / Tempo de aquisição e construção do protópito.

DIA 5 / Obtenção de licensa para colocação do captador de MdeL num local duma Biblioteca (muito frequentado) e dissimulado. Todo o sistema foi optimizado para ser silencioso (amortecedores de espuma na base da instalação e uso de um motor/ventilação /sucção adequado).

DIA 6-10 / O sistema usando silica gel esteve a operar em contínuo. O adsorvente foi retirado e colocado num Erlenmeyer fechado em atmosfera inerte. Retirada com uma seringa uma parte do espaço gasoso a inalação do mesmo não produziu efeitos… nem motivações, nem alteração de disposição. A pensar num modo de extrair algum material que possa estar absorvido.

DIA 11 / O material foi dividido em 3 partes e posto em contacto com um solvente aromático, um apolar e um polar (água), tudo em atmofera inerte de azoto. Agitação contínua do sólido na presença dos solventes testados. Centrigugação dos 3 conteúdos para remover o sólido. Evitar respirar o solvente aromático.

DIA 12 / Todos os extractos foram submetidos a técnicas analíticas, de cromatografia e de espectrometria de massa. Não foram detectados compostos.

DIA 13 / Para refletir  e não desistir.

DIA 14 / Repetir todo o processo usando carvão activado. Montagem do sistema.

DIAS 15-20 / Sistema com carvão activado a operar em contínuo.

DIA 21 / Extracções com os 3 sistemas anteriormente descritos.

DIA 22 / Análise química. A cromatografia e a espectrometria de massa detectam um composto de baixo peso molecular no solvente aquoso. Estimulante este resultado. Parece ser um composto único o que vai facilitar a identificação. Transferida uma alíquata da solução aquosa contida em sistema fechado e deixáda aberto ao ar. Nova análise não detecta nenhum composto. Deve ser muito volátil ou sensível ao ar.

DIA 23 / A exitação do momento não deixa descansar.

DIA 24 / Miro e remiro o fraco e a solução aprisionada em atmosfera inerte. Preciso de fazer algo mais para avançar na identificação do composto. A tentação é muito grande. Abrir o frasco e inalar/respirar. O suor escorre pelas fontes. As mãos tremem. Terá algum efeito?… toxicidade, dependência, efeitos colaterais … será apenas um sonho em solução aquosa?

DIA 25 / A situação está a ultrapassar os limites.. não como, não durmo… pergunto se devo patilhar com alguém, correndo o risco de ser considerado pouco credível, louco…
Aquele frasco é uma lâmpada mágica, uma poção mágica… o talvez seja nada.
É impossível… imparável… Vou abrir um pouco o frasco, respirar… abro… tremo… Inspiro num grande amplexo…

DIAS XX / Não sei quantos dias se passaram. Entrei num estado de sonulência, semi-consciência, letargia!
Devo ter acordado entretanto… agora, ontem, há quanto tempo?
Estou magro e esfomeado. À minha volta a sala parece ter sofrido um turbilhão. Os livros estão fora das estantes… ahhhh… Tenho estado a ler, estou a ler, quero ler, não posso parar de ler… queridos autores… companheiros generosos, tanto saber, tanta informação, tanto desafio A leitura parece facilitada, meus olhos são leitores quase digitais, metamorfoses adaptadas a este novo estado. Estou feliz, meus receptores estão saturados por essa molécula que se adsorveu no carvão activado... não quero saber o que é… sei que existe e me fez ultrapassar e viver um estado espiritual diferente… nem sei porque estou a escrever?
O que quero é ler, ler, ler…






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