Sophia
de Mello Breyner | “A cultura é cara, a incultura é mais cara ainda”
(DAS
CULTURAS)
1 –
A ARTE deve ser livre porque o ato de criação é em si um ato de liberdade. Mas
não é só a liberdade individual do artista que importa. Sabemos que quando a
Arte não é livre o povo também não é livre. Há sempre uma profunda e estrutural
unidade na liberdade. Onde o artista começa a não ser livre o povo começa a ser
colonizado e a justiça torna-se parcial, unidimensional e abstrata. Se o ataque
à liberdade cultural me preocupa tanto é porque a falta de liberdade cultural é
um sintoma e significa sempre opressão para um povo inteiro.
2 –
NÃO PENSO que exista uma arte para o povo. Existe sim uma arte para todos à
qual o povo deve ter acesso porque esse acesso lhe deve ser possibilitado
através dos meios de comunicação. Primeiro os “aedos” cantaram no palácio dos
reis gregos “o canto venerável e antigo”. Era uma arte profundamente
aristocrática. Depois os rapsodos cantaram esse mesmo canto na praça pública. E
Homero, foi, como se disse, o educador da Grécia. Isto é: a cultura foi posta
em comum. E por isso os gregos inventaram a democracia. A política começa muito
antes da política.
Penso
que nenhum socialismo real será possível se a cultura não foi posta em comum.
Quando o aedo, ou poeta medieval cantavam na praça o seu poema era ouvido por
todos, mesmo pelo analfabeto. E viajava por todo o país e de país em país: por
isso o mirandês canta Mirandolim-Marlbourg.
Depois
a cultura fechou-se em livros e os analfabetos e os pobres foram rejeitados.
Tudo se tornou mais complexo e complexado. As comunidades foram divididas e
cada homem foi dividido dentro de si próprio. Será preciso um enorme paciente e
múltiplo e obcecado esforço para construir o mundo de outra maneira. E é preciso
que nenhum dirigismo esmague esse esforço.
É
evidente que no mundo atual encontramos a par da arte uma meta-arte. O cubismo
é uma meta pintura, uma pintura sobre a pintura. Arte e meta-arte alimentam-se
e inspiram-se mutuamente e penso que este é um dos caminhos, uma das
possibilidades. Foi a ler Proust e Rimbaud que aprendi a escrever para
crianças. O simplismo e o populismo nunca conduzirão a nada. Se João Cabral de
Melo é capaz de escrever uma obra como “Morte e Vida Severina” é porque é capaz
de escrever “Uma Faca só Lâmina”. “Morte e Vida Severina” é um poema que todos
entendem, mas nele as imagens são tão precisas, e os versos tão densos como em
“Uma Faca só Lâmina”.
Creio
que o “poema para todos” é, dentro da cultura em que estamos, o poema mais difícil
de escrever. Creio que esse poema é necessário e por isso tenho procurado
encontrar um caminho para ele. Por isso em “Livro Sexto” invoquei
O
canto para todos
Por
todos entendido
Mas
sei que esse poema não se programa. E por isso, já depois do 25 de abril
escrevi:
Um
poema não se programa
Porém
a disciplina
Sílaba
por sílaba
O
acompanha
Mas
a disciplina do poema não é a da política.
O
poema é disciplinado pela sua própria necessidade.
Nem
o próprio artista se pode programar a si próprio. O Ministro da Comunicação
Social disse que os períodos revolucionários não eram propícios às artes de
vanguarda. Não podemos esquecer que também Hitler e Salazar não se entendiam
bem com a arte de vanguarda e que ambos a perseguiam. Um verdadeiro período
revolucionário está aberto a todas as formas de criação.
3 –
É EVIDENTE que há incoerência. As campanhas de dinamização são mais políticas
do que culturais. Fazem um doutrinamento político que deve ser feito pelos
partidos. Pois não há doutrinamento apartidário. Não há angelismo político. Um
doutrinamento político que se apresenta como apartidário é necessariamente
ambíguo.
Vivemos
no pluralismo. Mas não queremos viver na ambiguidade. Queremos que o pluralismo
seja nítido e declarado com clareza. Que todo aquele que exerce uma atividade
de doutrinamento político diga aos outros o partido a que pertence ou que
apoia.
Queremos
uma revolução clara. Queremos a clareza e a coerência dessa clareza. Este país
tem neste momento uma intensa consciência da necessidade de clareza.
A
política é um capítulo da moral. O povo que somos votou conscientemente e quer
a política que escolheu. Queremos justiça social concreta mas sabemos que essa
justiça só se poderá construir na liberdade e na verdade.
Sabemos
muito claramente o que não queremos. Não queremos a violência, não queremos que
a liberdade seja sofismada. Não queremos nem inquisições nem perseguições. Não
queremos política da terra queimada. Não queremos política imposta. E no plano
da cultura queremos acima de tudo que a política não seja anti-cultura.
A
demagogia é a traição cultural da revolução. Porque a demagogia é a arte de
ensinar um povo a não pensar. Um provérbio africano diz: Uma palavra que está
sempre na boca transforma-se em baba. Não queremos continuar a suportar a baba
dos slogans.
Querer
fazer política cultural quando os meios de comunicação estão inundados de
demagogia é uma incoerência radical. O ministro da comunicação referiu-se ao
facto de o trabalho dos artistas ser agora pago pelo povo. Também muitos
jornais são agora pagos pelo povo e todos os dias custam ao povo uma despesa
escandalosa.
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