quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Contos breves (insólitos ou não) (11+1)

uma breve nota final

SOBRE OS CONTOS BREVES

Os 11+1 contos que foram aparecendo, resultaram de uma necessidade de ultrapassar o síndromo da folha branca e juntar temas que estavam no recôndido. Em geral o processo, analisado agora à posterior, decorria sempre do mesmo modo. A ideia surgia, e num momento de silêncio e solidão (no sentido de estar só fisicamente e sem outras conotações), a(s) história(s) iam sendo construídas, não sem a cumplicidade de vivências, experiências, observações, mas claro fantasiadas, pois como dizem a ficção tem sempre algo de realidade, mas estravasa-a. Depois de aboberarem em lugares que nem sei onde, a forma mais final queria ser preto no branco, e a escrita nunca era a parte mais penosa. Seguiam-se os apuramentos de estilo, a concretização melhorada de ideias esplanadas. Mas esta parte é um deleite quando em frente a um écran de computador. O “cut and paste” é desafio, o poder de mudar e alterar palavras e textos, e a sua ordem é um dos lados que encantam e estimulam… como que esculpir algo belo a partir de algo ainda em bruto, mas um bloco já promissor. Não tem nada de novo, usa apenas tecnologia, mas desde que vi as fichas que Nobokov usava por exemplo para escrever Lolita, fichas estas que contendo textos, frases podiam ser reordenadas/trocadas num ficheiro/baralho de ideias e palavras, fiquei rendido … era o “cut and paste” da altura. 
E depois é maravilhoso ver que pedaços de realidade podem ser subversivos e encontrarem outros destinos e significados. Por exemplo, o “Principezinho” de cabelo ouriçado existe e fez as perguntas; a rapariga diáfana do terceiro andar do prédio da frente nunca existiu (o prédio sim, com marquises de alumínio habitadas; o conto serviu para uma homenagem a Hitchcock que tanto gosto, mas claro, sem a genealidade de homenagem que sempre o Brian de Palma lhe prestou nos seus filmes); a rapariga da solidão estava na esplanada, mas o namorado apareceu atrasado e jantou com ela; Kafka foi motivador e modelo; o Parque em Moscovo e o frio foram visitados e sentidos, o Samovar mal me lembro; Happiness, inspirada numa rapariga chinesa vista num restaurante do Soho, levou a escrever no feminino, etc. etc.
Foram momentos de prazer, os quais podem não voltar. 
Outros caminhos podem ser explorados, mas estes fragmentos talvez possam “ser embrulhados” e oferecidos...

Contos breves (insólitos ou não ) (11)

CALMA

Gosto de me levantar cedo, sentar-me no pequeno jardim que contorna o meu lugar, sentir o frio da manhã, a tranquilidade da hora, e espalhar os papéis pela mesa que se misturam com os sons dos pássaros. Nestes momentos, sinto cada vez mais, que o pensamento (considerando ou não a alma) é uma voz tão interior que se ouve nitidamente e muitas vezes parece ser outro a sussurar dentro de nós. Gosto de me sentir calmo, com poder de discernimento e ser decisório, mas muitas vezes o turbilhão de “acontecimentos” dentro da minha mente deixa-me descontrolado. Sinto uma falta nítida de poder de decisão e de escolha, assustado e pressionado pelos muitos conteúdos que me povoam interiormente, e claro, também preocupado por não ser capaz de me organizar e de levar a cabo todas as tarefas a que me proponho. Na realidade, a mente humana é uma esponja de armazenagem e de permeabilidade a tudo o que nos envolve, e os múltiplos estímulos exteriores são potentes catalisadores de muitas reações em cadeia, que mais atrapalham ainda os conteúdos já existentes. 
Por isso, conforme dizem, a noite não é muitas vezes boa conselheira. Nnesse periodo de estado transiente, os problemas avolumam-se e tomam proporções assustadoras. 
Gosto muito de me levantar cedo, deixar a noite, e estar calmo no início do dia, no fresco matinal. Sentir que estou no controlo das etapas esperadas ou não, e tantas vezes tão difícil...
Muito cedo, antes de me levantar… um anjo, branco e etéreo, dá-me uma panóplia de pequenos comprimidos multicolores. Costumo voltar a adormecer lentamente. Acordo depois, levanto-me e caminho para o fresco do jardim, mais seguro de mim mesmo.
Calmo. Calmo.
Mas é bom conhecer os nosso limites e os nossos potenciais. 
Se os conseguirmos controlar melhor ainda. 


Contos breves (insólitos ou não) (10)

CONVERSAS

skype
almamater22.34: Olá, boas… estavas agora no linkgates?
tropical22.36: Olá. Sim. Cá estou no Skype, já que insististes.
almamater22.38: Tudo bem ? Que se faz ?
tropical22.41: Nada de especial. A passar tempo.
almamater22.43: Queres ligar a cam? Difícil para mim sem…
tropical 22.46: Bem podes esperar sentado!
almamater22.50: Bolas…Já agora, tenho 28 anos.
tropical23.00 : Tanta info, não perguntei nada.
almamater23.03: É pá. Agressivo(a) !!
tropical 23.36: Fui fazer café. Desculpa a demora. Para que interessam os detalhes?
almamater23.39: Difícil conversar se não temos pontos de referência.
tropical23.43: Problema teu… ou falta de imaginação.
almamater23.46: OK, OK… que gostas ?
tropical 23.49: Cada vez pior… este écran não chegava para fazer a lista. Estamos a falar de comida ou de pintura?
almamater23.52: És duro(a) de roer.
tropical23.56: Aqui não vais roer nada.
almamater23.58: Realmente…
tropical24.01: Pois é. Se calhar estamos a milhas de distância e não temos nada em comum. Esta coisa do mundo global virtual não leva a nada.
almamater24.05: Nem vamos saber nada, pelos vistos.
tropical24.08: Isto tudo é uma treta.
almamater24.13: Ou fazemos disto uma treta.
tropical 24.17: Se calhar é isso. Foi gira esta desconversa. Envia-me uma mensagem num garrafa… se a encontrar respondo. Assina “almamater”. Talvez a encontre numa zona tropical.

Signed out



sábado, 8 de setembro de 2018

Contos breves (insólitos ou não) (9)

RECEITA

Pediram-me um Autorretrato. Pelos vistos estou a ficar apetecível para os media. Sem diretivas nem nada… pedido a seco. Talvez um quadro para pendurar numa galeria ou algum local mais solene, ou um artigo a ser publicado num jornal ou revista semanal. 
Devia haver uma receita para elaborar Autorretratos. 
A elaboração de um Autorretrato (desenhado, pintado, escrito) pressupõe uma observação íntima (descoberta até) de nós próprios, com a preocupação de transmitir, de forma nítida ou não, possivelmente verdadeira ou relacionada, a imagem consciente que temos do objeto (neste caso de nós próprios). Por conseguinte, o (re)toque pessoal é inevitável. Em pintura o grau de liberdade é mais vasto, e a imaginação ou técnica, ou a imagem que se pretende transmitir pode levar por caminhos os mais diversos. Na escrita há em geral um procedimento mais restrito.
Afinal, um Autorretrato é um retrato, uma imagem, que se faz de si mesmo.
De olhos postos na folha branca ou no canvas, viajamos pela nossa vida e revivemos aquilo que está na base do que somos hoje. Na realidade, existimos como um produto de influências do meio (em que) e das pessoas (com as quais) vivemos. Do carinho, amor, afetos, estímulos, ensinamentos, desafios, possibilidades, opotunidades, escolhas, acasos e predestinações, ânimos e desânimos, vitórias e derrotas…
No final, as pinceladas podem ser mais ou menos finas ou grosseiras, podem juntar-se elementos definidores, e as palavras a usar mais ou menos certeiras e descritivas. Podem não cobrir toda a paleta de cores ou todas as palavras e construções necessárias…
Um Autorretrato pode não incluir explicitamente todos os cruzamentos que povoam o background (paisagem ao longe), mas sem eles, o canvas ou a página teria sempre ficado muito mais monocromáticos  menos compreensivas.
O Autorretrato fatual e íntimista, quase um monólogo, destina-se a ser patilhado.
Mãos à obra… a receita vai sofrer muitas alterações…prevejo.



Contos breves (insólitos ou não) (8)

(DES)ENCONTROS

Como nos amámos. Há tanto tempo. Nos bancos da escola, nos bancos dos jardins, nas caminhadas inocentes de mão dada, na borda do passeio. Tanto em comum, tudo a descobrir. Tantas promessas. Mudámos de cidades. Frequentámos universidades diferentes. A distância, o tempo, as comunicações então difíceis criaram barreiras que foram intransponíveis. Guardámos no mais escondido lugar, algo de muito belo e que não seria apagado, acreditámos. 
Segui uma carreira professional de sucesso. Soube que ela também. 
Tive filhos e netos. Ela também. 
Envelheci e ela também. 
Agora reformado, procurando ocupar o tempo com algo que possa ser útil e diferente, tenho vindo a dedicar-me a uma ONG que tem encontro mundial marcado em Paris dentro de dois meses. Programa já disponível na webpage da conferência. Falo numa sessão paralela ao fim da primeira manhã do evento. No segundo dia, espanto o meu, ela também apresenta uma comunicação. As nossas fotos, no meio dos Keynote Speakers, mostram que o tempo mapeou, com as rugas que são a história das nossas vidas, os nossos rostos, mas não alterou o brilho dos nossos olhos.
Inevitável o nosso reencontro. 
Vai ser difícil, vai ser fácil?


Contos breves (insólitos ou não) (7)

HAPPINESS

Deram-me o nome de felicidade. Quer dizer, o meu nome era pronunciado em chinês (mandarim), mas era este o significado. Porque os meus pais queriam que fosse feliz ou fizesse as pessoas felizes, quem sabe. Mudámos muito cedo para Londres, nem me lembro de ter vivido noutro local. Sempre me senti bilingue e com duas pátrias, entre duas culturas e idiomas… na verdade nem sei em qual penso ou sonho. A família esmerou-me na língua natal, e as escolas porque passei foram sempre escolhidas, com tal esmero, que se não olhassem para os meus olhos amendoados, teria casting garantido em qualquer peça de Shaw. Nunca me preocupei com bens materiais, nem havia de quê. Business Schools, MBAs, PhD na LSE. A City esperava-me, diria pela red carpet. Inteligente, eficaz, mordaz, exigente, profisional tornava às vezes dificeis as relações com os colegas do outro sexo. Com muitos compromisso sociais agendados, era muito fácil iniciar relações, que nunca duravam muito, por óbvias razões: competição, inveja, outros interesses, a procura do excelente partido que viam em mim. Convidar ao meu apartamento frente ao Thames, perto da Tate, levava os convidados à atitude de algo inatingível…
Afinal era felicidade e o nome não estava a cumprir as suas funções, ponto final. Porque não mudar de atitude. Um blind date, alguém normal, a conhecer do zero. Internet, bar perto de Convent Garden, um drink e talvez continuar num jantar. Tudo combinado por email, hora H, lugar X. Eu indicara uma T-Shirt vermelha e lá estava. Ele chegou, fácil o eye contacto e o reconhecimento. James, alto, descontraído … quebrar o gelo, informáticas e… eu sorri, disse que era muita informação. Perguntou porque não usava whatsapp, redes sociais… tentei modular a minha pronúncia, introduzir palavras que nunca u(ou)saria… e recreeei, no momento,  uma imagem de perfeita alienada dessas tecnologias… James sorriu, nem acreditava que eu existia, e foi desenvolvendo temas do seu interesse, e muito em breve estava a conduzir uma visita guiada às maravilhas das tecnologias… quase tutoriais, mas dados com grande empenho… a abrir uma caixa negra à sua ouvinte (boa ouvite por acaso!). A conversa decorria, era técnica mas ao mesmo tempo havia uma felicidade no discurso… Afinal estava a fazer alguém feliz, escutava… anuia… e estava atenta e presente. No entanto sabemos que temos o lado dual de nos observarmos em simultâneo, e embora feliz, ao mesmo tempo aterrorizada com a estranheza da situação que tinha criado (artificial, cruel?).
Despedimo-nos, ele talvez mais feliz que eu... 
Mas, felicidade talvez seja isto, e vou pensar seriamente em enviar o meu número de whatsapp por email… 
Não lhe disse que me chamava Happiness!

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Contos breves (insólitos ou não) (6)

MÚSICA FINITA (ou... A ÚLTIMA MÚSICA)

Já não faz muito sentido pensar na idade que tenho. Milhares e milhares de anos se passaram desde a chegada do homem à Lua. Nem sei se consigo definir o meu corpo, nem como se processa o meu pensamento. O meu corpo é transparente/radiante/difuso e a mente dispara em todos os sentidos, capta o que escolhe, transmite o que preciso. Estou entre a matéria e a energia. Se uso estes termos é que sempre tive um fraco pela arqueologia científica. Aprendi que existiam referências pouco precisas a modos de transporte arcaicos inacreditáveis, e o espaço e tempo eram conceitos que começaram a ser discutidos por alguém/nome que encontrei (Einstein). Nem sonhava o que ia acontecer a estas "trouvailles" e às multidimensionalidades do problema.
No entanto é interessante que a música permaneceu nos nossos desejos e interesses … afinal não é a música a que melhor estimula o cérebro (outro nome pioneiro nestas coisas era Damásio, dizem)? Ao que sei, a evolução manteve esta apetência e a busca da beleza pelo som permaneceu, embora os meios de compor, reproduzir e difundir “sons” (músicas como diriam os nossos idos) sejam incomparáveis. 
Na realidade ocupo muito do meu tempo livre (que é muito, pois pouco tenho que fazer) a compor e a estudar a evolução e a fruição musical e a construir (prefiro que a compor) sonoridades… que são muito apreciadas nas nossas ondas energéticas, em particular, porque a solidão a que nos dedicamos nos leva à criação quase sem limites...
Agora muito preocupado. Utilizo doze notas musicais (com tons, semitons, sustenidos e bemóis … repetindo ciclos), escalas maiores e menores, sequências ordenadas de notas, escalas diatónicas e cromáticas, em claves que encontrei descritas. Tal como na música ocidental, também inspirado na música de uma região que existiu (China) utilizo outras escalas, isto é, conjuntos de notas dispostas de acordo com um certo centro tonal que também manejo, e onde existem diversos tipos de escalas cujo número de notas pode ser variável, tão pouco como 3 notas diferentes, a um máximo de 9, sendo que a esmagadora maioria utilizou uma escala de 5 notas (pentatónica). Não me esquivei ao dissonante. Tantas possibilidades usei!!!
Um pequeno cálculo no meu info-multi-VED-RX2 parece indicar que podemos estar a esgotar as possibilidades de conjugações/combinações de notas, escalas, tons, pelo muito que se compôs ao longo destes milhares de milhares de anos. E os detetores de consonâncias-coincidências analisam tudo e não perdoam (ética e plágio são pontos incontornáveis na nossa organização social/coletiva). 
Cada vez mais difícil fazer/criar algo de novo…
Arrisco-me um dia a compor a última sonoridade?  Problema que me preocupa deveras. 
Urgentes novas escalas… ou (re)inventar tudo de novo?
Não conseguiria viver sem "música".

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Contos breves (insólitos ou não) (5)

O ALFA e o ÓMEGA

Porque razão quando crescemos perdemos a capacidade de observar as coisas de um modo puro e colocar as perguntas certas? Não quer isto dizer que não sejamos creativos e imaginativos ao longo da vida, mas falar e pensar sem barrreiras, muitos poucos o conseguem, devido aos muitos constrangimentos societais e  educacionais. 
Numa tarde quente de verão, debaixo da sombra de uma árvore protetora, quando o corpo amolece mas a mente não, observava o olhar inquieto daquele miúdo ao meu lado, que me fazia sentir Exupéry ao lado do Principezinho. E o meu comparsa, com o seu cabelo curto, loiro e ouriçado, contava-me que ia ter um irmão, e sem muitas questões indicou-me que estava na barriga da mãe. Dificuldade antecipada, mas superada, pois a questão parecia estar a ficar por ali. Enganava-me. Continuava a discorrer e perguntou-me de que barriga vinha a mãe dele, etc, etc… em contínuo crescente geracional. Bem, aqui estávamos a entrar nas “bonecas russas”, encaixadas umas nas outras e o tema era-me confortável de modo a conseguir talvez dar uma volta ao assunto, pois esta ideia do dentro e do fora sempre me fascinou (dentro de e fora de, dentro da célula e fora da célula, dentro e fora do planeta Terra, dentro e fora do Sistema Solar, etc, etc….). 
Mas a coisa não desarmava. Olhando a copa da árvore que estremecia levemente com a brisa da tarde, o miúdo olhou-me certeiro e disparou… e olha, e quando eu for grande onde é que tu vais estar? 
Uauuuuu… Duas megas questões numa tarde é muito para um “Exupéry”. 
Naquele momento senti-me mais pequeno que o meu Principezinho. 
Afinal, nem era capaz de responder a duas questões tão primordiais: o princípio e o fim…




















Contos breves (insólitos ou não) (4)

ESPERO QUE TE ENCONTRES  BEM

Moro num prédio antigo, no centro da cidade, que tinha uma vista agradável. Recentemente foi construído um prédio “anémico”, mesmo em frente, completado nas traseiras com largas janelas/marquises de alumínio e claro, a paisagem mudou. Muitas janelas, muito movimento. Sem querer, comecei a “seguir” a minha vizinha da frente do terceiro andar. Rapariga engraçada, cabelo loiro esvoaçante, leve, frágil e quase transparente! Parecia pairar, e até cheguei a temer, que se abrisse a janela, poderia ser arrastada pela brisa… Quando chego a casa ao fim da tarde, a sua presença tornou-se um hábito e um desejo. A minha “vizinha” tem sempre um ar ausente ou concentrado, nem sei. Em geral observo-a a ler cartas, com muitas páginas, a leitura acompanha movimentos passeantes de cá para lá, com leitura em voz alta, assim adivinho. Outras vezes, sentada, escreve prosas que parecem intermináveis. À noite, na penumbra, a atividade continua. Nunca lhe vejo um telemóvel, computador ou outros. Rapariga à moda antiga, que gosta de cartas (de amor?). 
No outro dia, ao fim da tarde, chorava e rasgou alguns textos… 
Nunca a vi no café da esquina, também não em compras nas lojas das redondezas.
E um dia desapareceu…
Quem sabe se vai ler este texto?
E espero que se encontre bem…

Ps. “Rear Window” de A. Hitchcock não é inocente.